Blog Núcleo Semente

O Blog do Núcleo Semente tem por objetivo ampliar o espaço de divulgação e discussão de temas relacionados ao mundo do Trabalho, da Saúde Mental e dos Direitos Humanos. Está aberto à colaboração de todxs os membros do Núcleo e de pesquisadores e pessoas de outras áreas que tenham interesse nessas temáticas. Equipe responsável: GT Comunicação e Difusão: Ana Yara e M Laurinda R Sousa.

Archive for julho 2024

9 de julho: Histórias não contadas

No Comments »

    No Dia 9 de julho, em comemoração ao Dia da Luta Operária, realizou-se, no Sindicato dos Padeiros, a entrega do troféu José Martinez. O texto que se segue conta um pouco dessa história. 

Maria Maeno recebendo o troféu José Martinez

Maria Maeno, Edith Seligmann Silva, Carlos Aparício Clemente

M. Laurinda R. Sousa

 

Para onde foram os pedreiros
quando a muralha da China ficou pronta?
Brecht
Para onde foram os mortos e desaparecidos
da Greve Geral de 1917? Estão numa vala comum?

     Foi um dia chuvoso o 9 de julho deste ano. Feriado em São Paulo. Data instituída por Mario Covas, em 1997, como marco de celebração “do dia da Revolução Constitucionalista” de 1932, uma história conhecida e partilhada.

    Esse ano, o de 1932, se iniciou com uma manifestação de revolta contra o governo centralizador de Getúlio Vargas que, em 1930, fechara o Congresso Nacional e anulara a constituição de 1891. Em protesto, cerca de 100.000 pessoas ocuparam a Praça da Sé, no dia do aniversário da cidade.

    Em 23 de maio, quatro estudantes de Direito que lutavam pelas forças constitucionalistas, Martins, Miraglia, Dráusio e Camargo, foram baleados e mortos pelos que defendiam o governo central. Desencadeou-se, assim, o acirramento de uma revolta armada, que tomou o acrônimo MMDC como símbolo dessa luta.  Com forças desiguais, sem o apoio prometido de outros Estados, com muitas mortes, os constitucionalistas se renderam, em outubro de 1932.

    Apesar da derrota, algumas reivindicações foram atendidas e levaram à formação de uma Assembleia Constituinte que elaborou a nova Constituição de 1934.

    Essa é, em linhas muito gerais e superficiais, uma história contada.

    Mas, há uma outra história que também se celebra nesse dia, 9 de julho, e da qual não se ouve falar; uma história não contada.

    Trata-se do Dia da Luta Operária, dia instituído em homenagem ao sapateiro anarquista sindicalista, emigrante espanhol, José Ineguez Martinez, baleado pela Força Pública no dia 9 de julho de 1917, no Brás, quando participava de uma greve por melhores condições de trabalho e de vida.

    Seu funeral mobilizou toda a cidade; os operários e operárias se juntaram num cortejo de protesto e solidariedade, que foi do Brás até o Araçá. As fábricas foram sendo fechadas à medida que o funeral passava, e a greve se espalhou por São Paulo,  constituindo-se na Primeira Greve Geral da Classe Operária; símbolo do surgimento da consciência de classe e da capacidade de organização dessa população.  

    A cidade parou completamente naquela semana de julho: fábricas, comércio, energia elétrica, bondes, abalando o forte poder oligárquico da época e tornando visíveis as condições precárias de vida e moradia que atingia a classe operária.

    As condições para a revolta foram sendo acirradas pela decisão dos fazendeiros e industriais  em atender prioritariamente os países em guerra (Primeira Guerra Mundial, 1914-18) para os quais eram enviados alimentos e tecidos para os uniformes dos soldados, o aumento da carestia e da fome, a repressão violenta a qualquer manifestação de protesto pela insatisfação crescente entre os trabalhadores – homens, mulheres e crianças -  que tinham que cumprir uma carga de até 14 horas diárias nas fábricas, inclusive aos sábados, para atender a demanda crescente de exportação. Tudo isso sem um aumento de salário que permitisse a mínima sobrevivência.

    Interessante ressaltar que esse movimento foi iniciado por mulheres que trabalhavam no Cotonifício Crespi, no bairro da Mooca. Foram elas as primeiras a parar a tecelagem, criando o exemplo e pressão para que outras fábricas parassem. Outro exemplo, viera de um lugar distante: a greve iniciada no mesmo ano e que marcara a queda do regime czarista, na Russia:  mulheres operárias, também com fome, pararam de trabalhar, em Petersburgo, reivindicando pão para comer.

    A Polícia paulista reagiu ao movimento com violência. Dos inúmeros confrontos, muitas mortes e registro de desaparecidos. Aos familiares que procuravam informações não eram dadas respostas convincentes. Outros nem eram procurados; suspeita-se que sendo grande parte constituída por emigrantes não havia familiares que soubessem de seu desaparecimento. Mas, para além disso, temos de considerar o “pouco valor” dado a essa mão de obra “ainda escravizada”, facilmente invisibilizada; há relatos de carros de bombeiros levando corpos que foram enterrados em valas comuns na “calada da noite”. Uma história, como tantas outras que se repetiram, e ainda estão à espera de investigação, justiça e reparação.

    O final da greve foi vitorioso: diminuição da jornada de trabalho, aumento salarial, anistia política aos grevistas, controle de preços, proibição do trabalho infantil. Reivindicações aprovadas numa assembleia com mais de 10.000 participantes e com o canto da Internacional. “...Bem unidos façamos/ Nesta luta final/ Uma terra sem amos/ A Internacional...”.

    Segundo José Luiz Del Roio, militante político que estudou e escreveu sobre esse período, a grande aprendizagem foi “o reconhecimento de que as conquistas dos trabalhadores não podem ser consideradas definitivas; há sempre um poder elitista, de mentalidade escravocrata, querendo destruí-las. É preciso conhecer a história e o valor dos coletivos. É preciso que a luta continue”.

    No centenário dessa greve, em 9 de julho de 2017, foi instituído o Dia da Luta Operária, pela lei municipal 16.634, de autoria do vereador Antonio Donato, em homenagem a José Martinez e a todos os trabalhadores.  Dois anos depois, foi criado pelo artista plástico Enio Squeff e o fundidor Luciano Mendes, o troféu José Martinez, entregue, cada ano, a pessoas que se destacam na defesa das questões trabalhistas.

    Toda essa história, pouco conhecida, foi contada e relembrada no ato deste 9 de julho de 2024, dia que começou frio e chuvoso, mas que se aqueceu no encontro solidário e festivo realizado no Sindicato dos Padeiros.

    Deixei para o final, o motivo que me impulsionou a estar lá. Partilhar da alegria, na companhia amiga de Edith Seligmann Silva, de assistir à entrega do troféu a duas pessoas importantes nessa causa. Maria Maeno, médica especializada em Saúde Coletiva e Saúde do Trabalhador, pesquisadora da Fundacentro e membro do Núcleo Semente. Ativa pesquisadora e defensora dos direitos trabalhistas. E Carlos Aparício Clemente, ex-dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, diretor do Espaço Cidadania, reconhecido defensor dos temas ligados à saúde e segurança do trabalhador e da inclusão social.

    Também neste encontro a banda tocou e acompanhou o canto coletivo da Internacional.

  Na saída, ainda havia chuva, mas este 9 de julho ganhou, para mim, outro sentido; um forte reconhecimento do poder das lutas solidárias.

 

Referências sugeridas:

De Maria Maeno:  várias lives e entrevistas no YouTube. Mais recentemente a importante entrevista ao Tutameia (8.7.2024).

O filme de Carlos Pronzato: 1917: A Greve Geral (no YouTube)

O livro de José Luiz Del Roio: A Greve de 1917. Os trabalhadores entram em cena. Alameda Editorial, 2017. Dele, há, também várias entrevistas no YouTube   

No Comments »

Cenas de Racismo tão constantes no nosso cotidiano e na forma de serem apresentadas pela Mídia, são um mote deste escrito feito por M. Laurinda R. Sousa

O RACISMO EM FOCO. CONVITES À DISSOCIAÇÃO

 6.7.2024, despreocupada, ligo a televisão e vou zapeando. Paro no noticiário da Globo News. As cenas me convocam: policiais atacam morador de rua.

Os vídeos, registrados nos celulares dos moradores do local, são claros; não deixam dúvidas. Um homem negro é atacado por cerca de 5 policiais. Reage à prisão, recebe chutes, porradas de cassetete, pontapés... É algemado e feito saco de lixo é jogado no carro que o levará. Levará “para onde”? Chegará a algum destino?

Admiro a coragem desse homem que resiste à violência e não se deixa paralisar pela força bruta.

Uma moradora do local é entrevistada e faz a denúncia-apelo: “estão levando nossas barracas e os pertences da feira que existe neste local. Com o frio que está fazendo, morando na rua, ficamos sem nenhuma proteção”.

A despreocupação já se foi. Assisto inquieta às cenas de violência.  Tão recorrentes.

A repórter encerra essa reportagem anunciando formalmente: os policiais serão investigados e os fatos apurados. E acrescenta: as autoridades municipais informaram que os policiais filmados não participaram do ataque a esse morador de rua. Como assim? E as cenas filmadas? Estão me convidando à recusa do que vi?

Logo em seguida, com um sorriso de quem dará boas notícias, a jornalista faz a comunicação do resgate e adoção de cachorrinhos apreendidos numa casa onde ficavam em condições de maus-tratos. Depois de receberem cuidados, serem vacinados e castrados, os pequenos animais estão à espera de adoção.

As fotos são claras; não deixam dúvidas. Os pets são tratados com carinho e os que ainda não foram adotados, estão agasalhados e protegidos em local seguro.

A repórter anuncia com ênfase: o dono do local, responsável pelos maus-tratos, continua preso.

Um sorriso parece tranquilizar o ouvinte: a justiça foi feita.

Com espanto me pergunto: como pode a primeira notícia ter um comentário tão anódino? E se passar rapidamente para uma outra que parece querer ter o poder de evitar o constrangimento, a vergonha, o horror de se ver a realidade crua das ruas. Impedir o pensamento e a crítica de como a cidade de São Paulo está cuidado de uma parte significativa de seus moradores.

Até quando os responsáveis por violências semelhantes não serão punidos? A política higienista não será condenada?

Ontem, uma outra notícia ganhou destaque: 4 adolescentes foram abordados pela polícia num bairro de luxo do Rio de Janeiro. 3 deles são negros e filhos de embaixadores. Aqui o final foi outro: considerando-se a origem desses meninos, o Itamaraty viu-se no dever de se desculpar e anunciar medidas imediatas de punição aos policiais envolvidos nessa abordagem. Isso, no entanto, não apaga o ato violento contra os meninos cuja “única infração” é a cor da pele.

Também neste início de mês, Graça Machel, ativista política militante da luta contra o Racismo e as injustiças sociais desde sua juventude, quando pegou em armas para lutar pela independência de Moçambique, viúva de Nelson Mandela com quem partilhou de lutas comuns, esteve no Brasil e falou de sua história: “Ninguém vai determinar o que sou e nunca vou calar quando há uma injustiça. O Brasil é um país reconhecido por sua hospitalidade, sua alegria, mas esse é só um plano. Em outro, é um país que precisa ter consciência da violência de seu racismo. Eu não sou a cor da minha pele. Eu sou humana, como todas as pessoas”.

Já na década de 80 do século passado, Hélio Pellegrino ao denunciar o rompimento do pacto social, garantia dos direitos fundamentais a todos seres humanos,  que estaria na origem da violência, afirmou: “É preciso mudar o modelo econômico e social brasileiro, por uma questão de higiene mental, moral e política. Por uma questão de vergonha!”

Continuamos sendo um país que não tem vergonha de mostrar sua cara: pretos, pobres e periféricos podem ser eliminados anodinamente.