Blog Núcleo Semente

O Blog do Núcleo Semente tem por objetivo ampliar o espaço de divulgação e discussão de temas relacionados ao mundo do Trabalho, da Saúde Mental e dos Direitos Humanos. Está aberto à colaboração de todxs os membros do Núcleo e de pesquisadores e pessoas de outras áreas que tenham interesse nessas temáticas. Equipe responsável: GT Comunicação e Difusão: Ana Yara e M Laurinda R Sousa.

9 de julho: Histórias não contadas

    No Dia 9 de julho, em comemoração ao Dia da Luta Operária, realizou-se, no Sindicato dos Padeiros, a entrega do troféu José Martinez. O texto que se segue conta um pouco dessa história. 

Maria Maeno recebendo o troféu José Martinez

Maria Maeno, Edith Seligmann Silva, Carlos Aparício Clemente

M. Laurinda R. Sousa

 

Para onde foram os pedreiros
quando a muralha da China ficou pronta?
Brecht
Para onde foram os mortos e desaparecidos
da Greve Geral de 1917? Estão numa vala comum?

     Foi um dia chuvoso o 9 de julho deste ano. Feriado em São Paulo. Data instituída por Mario Covas, em 1997, como marco de celebração “do dia da Revolução Constitucionalista” de 1932, uma história conhecida e partilhada.

    Esse ano, o de 1932, se iniciou com uma manifestação de revolta contra o governo centralizador de Getúlio Vargas que, em 1930, fechara o Congresso Nacional e anulara a constituição de 1891. Em protesto, cerca de 100.000 pessoas ocuparam a Praça da Sé, no dia do aniversário da cidade.

    Em 23 de maio, quatro estudantes de Direito que lutavam pelas forças constitucionalistas, Martins, Miraglia, Dráusio e Camargo, foram baleados e mortos pelos que defendiam o governo central. Desencadeou-se, assim, o acirramento de uma revolta armada, que tomou o acrônimo MMDC como símbolo dessa luta.  Com forças desiguais, sem o apoio prometido de outros Estados, com muitas mortes, os constitucionalistas se renderam, em outubro de 1932.

    Apesar da derrota, algumas reivindicações foram atendidas e levaram à formação de uma Assembleia Constituinte que elaborou a nova Constituição de 1934.

    Essa é, em linhas muito gerais e superficiais, uma história contada.

    Mas, há uma outra história que também se celebra nesse dia, 9 de julho, e da qual não se ouve falar; uma história não contada.

    Trata-se do Dia da Luta Operária, dia instituído em homenagem ao sapateiro anarquista sindicalista, emigrante espanhol, José Ineguez Martinez, baleado pela Força Pública no dia 9 de julho de 1917, no Brás, quando participava de uma greve por melhores condições de trabalho e de vida.

    Seu funeral mobilizou toda a cidade; os operários e operárias se juntaram num cortejo de protesto e solidariedade, que foi do Brás até o Araçá. As fábricas foram sendo fechadas à medida que o funeral passava, e a greve se espalhou por São Paulo,  constituindo-se na Primeira Greve Geral da Classe Operária; símbolo do surgimento da consciência de classe e da capacidade de organização dessa população.  

    A cidade parou completamente naquela semana de julho: fábricas, comércio, energia elétrica, bondes, abalando o forte poder oligárquico da época e tornando visíveis as condições precárias de vida e moradia que atingia a classe operária.

    As condições para a revolta foram sendo acirradas pela decisão dos fazendeiros e industriais  em atender prioritariamente os países em guerra (Primeira Guerra Mundial, 1914-18) para os quais eram enviados alimentos e tecidos para os uniformes dos soldados, o aumento da carestia e da fome, a repressão violenta a qualquer manifestação de protesto pela insatisfação crescente entre os trabalhadores – homens, mulheres e crianças -  que tinham que cumprir uma carga de até 14 horas diárias nas fábricas, inclusive aos sábados, para atender a demanda crescente de exportação. Tudo isso sem um aumento de salário que permitisse a mínima sobrevivência.

    Interessante ressaltar que esse movimento foi iniciado por mulheres que trabalhavam no Cotonifício Crespi, no bairro da Mooca. Foram elas as primeiras a parar a tecelagem, criando o exemplo e pressão para que outras fábricas parassem. Outro exemplo, viera de um lugar distante: a greve iniciada no mesmo ano e que marcara a queda do regime czarista, na Russia:  mulheres operárias, também com fome, pararam de trabalhar, em Petersburgo, reivindicando pão para comer.

    A Polícia paulista reagiu ao movimento com violência. Dos inúmeros confrontos, muitas mortes e registro de desaparecidos. Aos familiares que procuravam informações não eram dadas respostas convincentes. Outros nem eram procurados; suspeita-se que sendo grande parte constituída por emigrantes não havia familiares que soubessem de seu desaparecimento. Mas, para além disso, temos de considerar o “pouco valor” dado a essa mão de obra “ainda escravizada”, facilmente invisibilizada; há relatos de carros de bombeiros levando corpos que foram enterrados em valas comuns na “calada da noite”. Uma história, como tantas outras que se repetiram, e ainda estão à espera de investigação, justiça e reparação.

    O final da greve foi vitorioso: diminuição da jornada de trabalho, aumento salarial, anistia política aos grevistas, controle de preços, proibição do trabalho infantil. Reivindicações aprovadas numa assembleia com mais de 10.000 participantes e com o canto da Internacional. “...Bem unidos façamos/ Nesta luta final/ Uma terra sem amos/ A Internacional...”.

    Segundo José Luiz Del Roio, militante político que estudou e escreveu sobre esse período, a grande aprendizagem foi “o reconhecimento de que as conquistas dos trabalhadores não podem ser consideradas definitivas; há sempre um poder elitista, de mentalidade escravocrata, querendo destruí-las. É preciso conhecer a história e o valor dos coletivos. É preciso que a luta continue”.

    No centenário dessa greve, em 9 de julho de 2017, foi instituído o Dia da Luta Operária, pela lei municipal 16.634, de autoria do vereador Antonio Donato, em homenagem a José Martinez e a todos os trabalhadores.  Dois anos depois, foi criado pelo artista plástico Enio Squeff e o fundidor Luciano Mendes, o troféu José Martinez, entregue, cada ano, a pessoas que se destacam na defesa das questões trabalhistas.

    Toda essa história, pouco conhecida, foi contada e relembrada no ato deste 9 de julho de 2024, dia que começou frio e chuvoso, mas que se aqueceu no encontro solidário e festivo realizado no Sindicato dos Padeiros.

    Deixei para o final, o motivo que me impulsionou a estar lá. Partilhar da alegria, na companhia amiga de Edith Seligmann Silva, de assistir à entrega do troféu a duas pessoas importantes nessa causa. Maria Maeno, médica especializada em Saúde Coletiva e Saúde do Trabalhador, pesquisadora da Fundacentro e membro do Núcleo Semente. Ativa pesquisadora e defensora dos direitos trabalhistas. E Carlos Aparício Clemente, ex-dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, diretor do Espaço Cidadania, reconhecido defensor dos temas ligados à saúde e segurança do trabalhador e da inclusão social.

    Também neste encontro a banda tocou e acompanhou o canto coletivo da Internacional.

  Na saída, ainda havia chuva, mas este 9 de julho ganhou, para mim, outro sentido; um forte reconhecimento do poder das lutas solidárias.

 

Referências sugeridas:

De Maria Maeno:  várias lives e entrevistas no YouTube. Mais recentemente a importante entrevista ao Tutameia (8.7.2024).

O filme de Carlos Pronzato: 1917: A Greve Geral (no YouTube)

O livro de José Luiz Del Roio: A Greve de 1917. Os trabalhadores entram em cena. Alameda Editorial, 2017. Dele, há, também várias entrevistas no YouTube   

This entry was posted on 12 julho, 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.

Leave a Reply