Dímitre Moita²
A experiência recente como
docente de uma instituição de ensino superior (IES) privada incitou a reflexão
acerca de condições institucionais e de trabalho que considero relevante
compartilhar. A história que vou contar é bastante difundida, sobretudo entre
quem discute e luta nos campos da educação e do trabalho: a história da
crescente precarização da educação e do trabalho no ensino superior privado no
Brasil. A reflexão que segue é, além de um exercício de autoavaliação, um
convite ao diálogo sobre o que mudou e o que precisa ser mudado nesse setor.
Há uma massa de pesquisa e
conhecimento sobre a financeirização do setor, sobre a tendência de mercadorização
da educação e sobre a injustiça do financiamento público indireto através do
endividamento das pessoas mais pobres que acessam o ensino superior por meio do
FIES. Tudo isso é de extrema relevância e deve ser compreendido como o âmbito
macrossocial de determinação da vivência nas IES privadas. Minha reflexão está
circunscrita a um patamar microssocial, das experiências do cotidiano.
Sou professor de Psicologia do
Trabalho em uma IES privada. Costumo discutir com as estudantes, no tópico
Saúde Mental e Trabalho, o estudo de caso Aprisionado pelos ponteiros de um
relógio, de Maria Elizabeth Antunes Lima, Ada Ávila Assunção e João Manuel
Saveia Daniel Francisco. O estudo aborda o processo de adoecimento de Carlos,
porteiro de um edifício-garagem em Belo Horizonte que desenvolve um transtorno
mental relacionado à organização excessivamente rígida do trabalho, às
ferramentas de vigilância, como o relógio que precisava acionar a cada 25
minutos, ao turno fixo noturno, ao conteúdo empobrecido das tarefas, ao
isolamento e ao alto grau de monotonia a que foi submetido pela estrutura da
atividade.
Na discussão em sala, um
estudante, após percorrermos toda a descrição do caso, afirmou indignado, “ele
ficou como um rato numa caixa de Skinner!” (dispositivo de laboratório
utilizado para observar através do treinamento o comportamento de animais. O
sujeito experimental desses estudos costuma ser o rato). A analogia foi rica e
permitiu uma ótima reflexão entre as colegas: “ele foi reduzido à dimensão não
verbal, privado de se expressar simbolicamente, teve sua subjetividade reduzida
à operação de uma máquina”. Enquanto mediava aquele debate, me dei conta de que
a analogia se aplicava não somente ao Carlos, mas também a nós, estudantes e
professoras daquela IES privada.
Se para o Carlos, aprisionado
pelos ponteiros de um relógio, a caixa de Skinner era uma cabine de 1,2m por
0,8m, a nossa é a sala de aula. Com um pouco mais de variabilidade: nossa vida
é do elevador para a sala de aula, dela para o elevador. E o ciclo reinicia
amanhã. E depois. Porque, contratadas como horistas, as professoras precisam de
muitas disciplinas para compor a renda mensal (30 horas semanais dentro da sala
de aula podem ser vistas como um alívio, já que cargas semanais de 37, 39 ou 40
horas semanais são comuns), e atividades de pesquisa e extensão não são
remuneradas na maior parte dessas instituições. Os papéis dentro da sala de
aula são muito bem definidos e rígidos. Professoras devem conduzir todo o
processo: escolher atividades, definir avaliações, controlar presença e passar
o conteúdo. Estudantes devem passivamente acompanhar tudo: responder, obedecer,
silenciar e esperar. Em turmas maiores, todo o ritual pode se assemelhar
bastante a um comício ou uma dessas palestras de esquema de pirâmide a que
somos levados a contragosto.
Percebemos que somos muito mais
assemelhados ao porteiro do edifício-garagem do que observamos à primeira
leitura. E assim como Carlos, estamos adoecendo. De trabalho e educação! De ter
de operar uma educação bancária, tecnicista e paradoxalmente contrária às
necessidades de estudantes-trabalhadoras (na maior parte dos casos
trabalhadoras-estudantes, porque a primeira condição toma quase todo o tempo de
vida), formadas em ensino fundamental e médio carregados de precariedades. Aquilo
que é necessário, a IES privada oferece o contrário.
1 Este texto foi dividido em
duas partes, devido aos critérios para publicação no Blog. (até 5000
caracteres)
2 Psicólogo, mestre e doutor
em Psicologia pela Universidade do Ceará. Aperfeiçoamento em Saúde Mental
Relacionada ao Trabalho pelo Instituto Sedes Sapientiae. Professor de
Psicologia.