Blog Núcleo Semente

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Archive for dezembro 2023

A educação superior privada na caixa de Skinner: é possível construir saúde nas IES privadas? – Parte I¹

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Dímitre Moita²

 

A experiência recente como docente de uma instituição de ensino superior (IES) privada incitou a reflexão acerca de condições institucionais e de trabalho que considero relevante compartilhar. A história que vou contar é bastante difundida, sobretudo entre quem discute e luta nos campos da educação e do trabalho: a história da crescente precarização da educação e do trabalho no ensino superior privado no Brasil. A reflexão que segue é, além de um exercício de autoavaliação, um convite ao diálogo sobre o que mudou e o que precisa ser mudado nesse setor.

Há uma massa de pesquisa e conhecimento sobre a financeirização do setor, sobre a tendência de mercadorização da educação e sobre a injustiça do financiamento público indireto através do endividamento das pessoas mais pobres que acessam o ensino superior por meio do FIES. Tudo isso é de extrema relevância e deve ser compreendido como o âmbito macrossocial de determinação da vivência nas IES privadas. Minha reflexão está circunscrita a um patamar microssocial, das experiências do cotidiano.

Sou professor de Psicologia do Trabalho em uma IES privada. Costumo discutir com as estudantes, no tópico Saúde Mental e Trabalho, o estudo de caso Aprisionado pelos ponteiros de um relógio, de Maria Elizabeth Antunes Lima, Ada Ávila Assunção e João Manuel Saveia Daniel Francisco. O estudo aborda o processo de adoecimento de Carlos, porteiro de um edifício-garagem em Belo Horizonte que desenvolve um transtorno mental relacionado à organização excessivamente rígida do trabalho, às ferramentas de vigilância, como o relógio que precisava acionar a cada 25 minutos, ao turno fixo noturno, ao conteúdo empobrecido das tarefas, ao isolamento e ao alto grau de monotonia a que foi submetido pela estrutura da atividade.

Na discussão em sala, um estudante, após percorrermos toda a descrição do caso, afirmou indignado, “ele ficou como um rato numa caixa de Skinner!” (dispositivo de laboratório utilizado para observar através do treinamento o comportamento de animais. O sujeito experimental desses estudos costuma ser o rato). A analogia foi rica e permitiu uma ótima reflexão entre as colegas: “ele foi reduzido à dimensão não verbal, privado de se expressar simbolicamente, teve sua subjetividade reduzida à operação de uma máquina”. Enquanto mediava aquele debate, me dei conta de que a analogia se aplicava não somente ao Carlos, mas também a nós, estudantes e professoras daquela IES privada.

Se para o Carlos, aprisionado pelos ponteiros de um relógio, a caixa de Skinner era uma cabine de 1,2m por 0,8m, a nossa é a sala de aula. Com um pouco mais de variabilidade: nossa vida é do elevador para a sala de aula, dela para o elevador. E o ciclo reinicia amanhã. E depois. Porque, contratadas como horistas, as professoras precisam de muitas disciplinas para compor a renda mensal (30 horas semanais dentro da sala de aula podem ser vistas como um alívio, já que cargas semanais de 37, 39 ou 40 horas semanais são comuns), e atividades de pesquisa e extensão não são remuneradas na maior parte dessas instituições. Os papéis dentro da sala de aula são muito bem definidos e rígidos. Professoras devem conduzir todo o processo: escolher atividades, definir avaliações, controlar presença e passar o conteúdo. Estudantes devem passivamente acompanhar tudo: responder, obedecer, silenciar e esperar. Em turmas maiores, todo o ritual pode se assemelhar bastante a um comício ou uma dessas palestras de esquema de pirâmide a que somos levados a contragosto.

Percebemos que somos muito mais assemelhados ao porteiro do edifício-garagem do que observamos à primeira leitura. E assim como Carlos, estamos adoecendo. De trabalho e educação! De ter de operar uma educação bancária, tecnicista e paradoxalmente contrária às necessidades de estudantes-trabalhadoras (na maior parte dos casos trabalhadoras-estudantes, porque a primeira condição toma quase todo o tempo de vida), formadas em ensino fundamental e médio carregados de precariedades. Aquilo que é necessário, a IES privada oferece o contrário.



1 Este texto foi dividido em duas partes, devido aos critérios para publicação no Blog. (até 5000 caracteres)

2 Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade do Ceará. Aperfeiçoamento em Saúde Mental Relacionada ao Trabalho pelo Instituto Sedes Sapientiae. Professor de Psicologia.