Blog Núcleo Semente

O Blog do Núcleo Semente tem por objetivo ampliar o espaço de divulgação e discussão de temas relacionados ao mundo do Trabalho, da Saúde Mental e dos Direitos Humanos. Está aberto à colaboração de todxs os membros do Núcleo e de pesquisadores e pessoas de outras áreas que tenham interesse nessas temáticas. Equipe responsável: GT Comunicação e Difusão: Ana Yara e M Laurinda R Sousa.

A educação superior privada na caixa de Skinner: é possível construir saúde nas IES privadas? – Parte I¹

Dímitre Moita²

 

A experiência recente como docente de uma instituição de ensino superior (IES) privada incitou a reflexão acerca de condições institucionais e de trabalho que considero relevante compartilhar. A história que vou contar é bastante difundida, sobretudo entre quem discute e luta nos campos da educação e do trabalho: a história da crescente precarização da educação e do trabalho no ensino superior privado no Brasil. A reflexão que segue é, além de um exercício de autoavaliação, um convite ao diálogo sobre o que mudou e o que precisa ser mudado nesse setor.

Há uma massa de pesquisa e conhecimento sobre a financeirização do setor, sobre a tendência de mercadorização da educação e sobre a injustiça do financiamento público indireto através do endividamento das pessoas mais pobres que acessam o ensino superior por meio do FIES. Tudo isso é de extrema relevância e deve ser compreendido como o âmbito macrossocial de determinação da vivência nas IES privadas. Minha reflexão está circunscrita a um patamar microssocial, das experiências do cotidiano.

Sou professor de Psicologia do Trabalho em uma IES privada. Costumo discutir com as estudantes, no tópico Saúde Mental e Trabalho, o estudo de caso Aprisionado pelos ponteiros de um relógio, de Maria Elizabeth Antunes Lima, Ada Ávila Assunção e João Manuel Saveia Daniel Francisco. O estudo aborda o processo de adoecimento de Carlos, porteiro de um edifício-garagem em Belo Horizonte que desenvolve um transtorno mental relacionado à organização excessivamente rígida do trabalho, às ferramentas de vigilância, como o relógio que precisava acionar a cada 25 minutos, ao turno fixo noturno, ao conteúdo empobrecido das tarefas, ao isolamento e ao alto grau de monotonia a que foi submetido pela estrutura da atividade.

Na discussão em sala, um estudante, após percorrermos toda a descrição do caso, afirmou indignado, “ele ficou como um rato numa caixa de Skinner!” (dispositivo de laboratório utilizado para observar através do treinamento o comportamento de animais. O sujeito experimental desses estudos costuma ser o rato). A analogia foi rica e permitiu uma ótima reflexão entre as colegas: “ele foi reduzido à dimensão não verbal, privado de se expressar simbolicamente, teve sua subjetividade reduzida à operação de uma máquina”. Enquanto mediava aquele debate, me dei conta de que a analogia se aplicava não somente ao Carlos, mas também a nós, estudantes e professoras daquela IES privada.

Se para o Carlos, aprisionado pelos ponteiros de um relógio, a caixa de Skinner era uma cabine de 1,2m por 0,8m, a nossa é a sala de aula. Com um pouco mais de variabilidade: nossa vida é do elevador para a sala de aula, dela para o elevador. E o ciclo reinicia amanhã. E depois. Porque, contratadas como horistas, as professoras precisam de muitas disciplinas para compor a renda mensal (30 horas semanais dentro da sala de aula podem ser vistas como um alívio, já que cargas semanais de 37, 39 ou 40 horas semanais são comuns), e atividades de pesquisa e extensão não são remuneradas na maior parte dessas instituições. Os papéis dentro da sala de aula são muito bem definidos e rígidos. Professoras devem conduzir todo o processo: escolher atividades, definir avaliações, controlar presença e passar o conteúdo. Estudantes devem passivamente acompanhar tudo: responder, obedecer, silenciar e esperar. Em turmas maiores, todo o ritual pode se assemelhar bastante a um comício ou uma dessas palestras de esquema de pirâmide a que somos levados a contragosto.

Percebemos que somos muito mais assemelhados ao porteiro do edifício-garagem do que observamos à primeira leitura. E assim como Carlos, estamos adoecendo. De trabalho e educação! De ter de operar uma educação bancária, tecnicista e paradoxalmente contrária às necessidades de estudantes-trabalhadoras (na maior parte dos casos trabalhadoras-estudantes, porque a primeira condição toma quase todo o tempo de vida), formadas em ensino fundamental e médio carregados de precariedades. Aquilo que é necessário, a IES privada oferece o contrário.



1 Este texto foi dividido em duas partes, devido aos critérios para publicação no Blog. (até 5000 caracteres)

2 Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade do Ceará. Aperfeiçoamento em Saúde Mental Relacionada ao Trabalho pelo Instituto Sedes Sapientiae. Professor de Psicologia.

This entry was posted on 20 dezembro, 2023. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.

Leave a Reply