Blog Núcleo Semente

O Blog do Núcleo Semente tem por objetivo ampliar o espaço de divulgação e discussão de temas relacionados ao mundo do Trabalho, da Saúde Mental e dos Direitos Humanos. Está aberto à colaboração de todxs os membros do Núcleo e de pesquisadores e pessoas de outras áreas que tenham interesse nessas temáticas. Equipe responsável: GT Comunicação e Difusão: Ana Yara e M Laurinda R Sousa.

Archive for março 2024

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Maria Vitoria Benevides, socióloga, Professora Emérita da Faculdade de Educação da USP, relatou para Antonio Cândido, um fato acontecido na década de 80: Havia sido aprovada, em Milão, uma lei que assegurava aos operários um certo número de horas livres que eles poderiam ocupar para aperfeiçoamento cultural da forma que quisessem. A expectativa era de que escolheriam algum curso que permitisse o aperfeiçoamento de sua função no trabalho.  Para surpresa geral, o mais escolhido foi o desejo de aprender melhor sua língua e conhecer a literatura italiana.

Nesta semana publicamos o texto de Eva Wongtshowski que, na mesma linha da experiência relada por Maria Vitória Benevides, nos convoca, poeticamente, a um olhar para além do mundo do trabalho alienante; um mundo onde caibam outras formas de viver.


SOBRE O TRABALHO E A ARTE


Vou lhes contar uma história do livro de Eduardo Galeano, O livro dos Abraços, onde ele relata fatos verídicos que foi recolhendo nas suas viagens. Em seguida, vou tecer algumas considerações sobre o mundo do trabalho.

. A história:

Sixto Martínez fez o serviço militar num quartel de Sevilha. No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia por que se montava guarda para o banquinho. A guarda era feita porque sim, noite e dia, todas as noites, todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os soldados obedeciam.  Nunca se questionou, nunca alguém perguntou sobre o fato. Assim era feito, e sempre tinha sido feito.

E continuou sendo feito até que alguém, não sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha ordenado montar guarda junto ao banquinho, que fora recém-pintado, evtando que algum incauto sentasse na tinta fresca. (Burocracia/3).

 . Algumas considerações:

      Posso entender o Sr Sixto Martinez. Soldado raso está lá cumprindo o serviço militar obrigatório, e logo logo vai embora. Não cabe a ele a ousadia e o risco de perguntar por que afinal essa história de montar guarda a um banquinho. Sabe-se lá, a hierarquia militar não é brincadeira.

      Mas um general ou coronel, patentes alta e de carreira, supostamente teria mais liberdade de fazer perguntas sobre ordens e determinações dos seus antecessores.

Por que uma ordem ou determinação adquire tamanha força a ponto de não ser questionada por tantos anos? O fato de não se saber mais quem deu a ordem faz alguma diferença?

      A força de trabalho e a inteligência do soldado foram solenemente desrespeitadas.  Se perguntado sobre o que faz no quartel o que será que ele responderia?

      Essa história de algum modo conheceu bem: olhamos, mas não vemos. Percebemos visualmente, mas não ligamos essa percepção com a rede de nossas lembranças e conhecimento. A percepção visual fica perdida, sem sentido associado.  Diante de um fato estranho, não usual, ou mesmo dramático ou doloroso testemunhamos sua existência mas sem nos afetarmos pelo que foi visto. Um testemunho burocrático e empobrecido.

      O ponto central na história do Galeano é a questão do sentido do trabalho. Proteger as pessoas de sentarem num banco recém-pintado é nobre (embora um aviso por escrito fosse suficiente). O quartel propõe a Sixto que não pense, não use sua imaginação para cumprir sua tarefa, que não tome nenhuma iniciativa (querer saber qual a função do banco, por que está no meio do pátio, por que ele é tão valorizado a ponto de exigir um soldado montando guarda). É um convite à alienação. E a alienação não só empobrece, mas, faz sofrer. Sixto fica ao lado do banco, mas não participa com sua inteligência, seu interesse pelo mundo, pelas pessoas, pelos desdobramentos do que faz. Trabalha maquinalmente.

Albert Camus, escritor argelino, diz que a vida sem trabalho não vale, mas quando o trabalho não envolve a alma, a vida não se desenvolve e morre. Quanto mais complexo o circuito sujeito (pessoa), trabalho e significado, maior o prazer que cada um tem com o que faz; o rompimento desse circuito ocasiona sofrimento.  

            Sigmar Malvezzi, em palestra realizada no SESC Pompéia contou uma passagem do livro de Elizabeth Gaskell, escritora inglesa do século 19, que descreve o começo da industrialização: uma família de nove pessoas trabalha em teares para produzir novelos de linha. Ganham 13 shillings por mês. Destes 13, 7 devem ser pagos pelo aluguel do tear, cujo dono é o patrão. portanto sobram seis. Os seis devem pagar o leite, a aveia e as batatas com um pouco de sal, para o mês todo. No inverno um dos integrantes da família deixa o trabalho para recolher gravetos na vizinhança e mante-los minimamente aquecidos.  E a autora faz uma observação surpreeendente (estamos em torno de 1850): essa família não tem tempo para apreciar o por do sol, a beleza da paisagem.

            De fato, isso é uma questão, tanto é que Antonio Candido num texto de 1988 (130 anos depois – aquele onde reproduz o relato de M. Vitoria Benevides), “O Direito à Literatura”, que estenderíamos aqui como o direito à arte, afirma: “a arte alimenta, sem cultura se perde a alma que dá vida ao trabalho. A arte nos ensina a pensar, a imaginar, a conversar, a propor soluções. Põem-nos em contato com nossas emoções, transmite experiências, organiza nossa visão de mundo. Ajuda-nos a superar o caos e o vazio”.

            No início de nossa Era, Santo Agostinho faz um testemunho semelhante ao descrever a primeira vez em que escutou uma missa com canto (400 dc): “quanto não corei fortemente comovido ao escutar os cantos e hinos ressoando maviosamente na vossa igreja. Essas vozes insinuavam-me nos ouvidos, orvalhando-me de verdade, meu coração ardia em afetos piedosos e corriam-me dos olhos as lágrimas, mas sentia- me consolado”. 

            Não importa se é um hino religioso, uma musica sertaneja falando de saudades, ou uma sinfonia de Beethoven. O importante é a emoção que a beleza e a provocação da arte nos proporcionam. Sem ela, “se perde a alma que dá vida ao trabalho”.

            Não é este um bom argumento para entender e justificar os movimentos recentes pela diminuição do tempo de trabalho? Pela semana de quatro dias?

Eva Wongtshowski é psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.