Maria Vitoria Benevides, socióloga, Professora Emérita da Faculdade de Educação da USP, relatou para Antonio Cândido, um fato acontecido na década de 80: Havia sido aprovada, em Milão, uma lei que assegurava aos operários um certo número de horas livres que eles poderiam ocupar para aperfeiçoamento cultural da forma que quisessem. A expectativa era de que escolheriam algum curso que permitisse o aperfeiçoamento de sua função no trabalho. Para surpresa geral, o mais escolhido foi o desejo de aprender melhor sua língua e conhecer a literatura italiana.
Nesta semana
publicamos o texto de Eva Wongtshowski que, na mesma linha da experiência
relada por Maria Vitória Benevides, nos convoca, poeticamente, a um olhar para
além do mundo do trabalho alienante; um mundo onde caibam outras formas de
viver.
SOBRE O TRABALHO E A ARTE
Vou lhes contar uma história do livro de
Eduardo Galeano, O livro dos Abraços, onde ele relata fatos verídicos que foi
recolhendo nas suas viagens. Em seguida, vou tecer algumas considerações sobre
o mundo do trabalho.
. A história:
Sixto Martínez fez o serviço militar num
quartel de Sevilha. No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao
banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia por que se montava guarda
para o banquinho. A guarda era feita porque sim, noite e dia, todas as noites,
todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os
soldados obedeciam. Nunca se questionou,
nunca alguém perguntou sobre o fato. Assim era feito, e sempre tinha sido feito.
E continuou sendo feito até que alguém, não
sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso
revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta
e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha ordenado montar
guarda junto ao banquinho, que fora recém-pintado, evtando que algum incauto
sentasse na tinta fresca. (Burocracia/3).
.
Algumas considerações:
• Posso entender o Sr Sixto Martinez. Soldado
raso está lá cumprindo o serviço militar obrigatório, e logo logo vai embora.
Não cabe a ele a ousadia e o risco de perguntar por que afinal essa história de
montar guarda a um banquinho. Sabe-se lá, a hierarquia militar não é
brincadeira.
• Mas um general ou coronel, patentes alta e de
carreira, supostamente teria mais liberdade de fazer perguntas sobre ordens e
determinações dos seus antecessores.
Por que uma ordem ou
determinação adquire tamanha força a ponto de não ser questionada por tantos
anos? O fato de não se saber mais quem deu a ordem faz alguma diferença?
• A força de trabalho e a inteligência do
soldado foram solenemente desrespeitadas.
Se perguntado sobre o que faz no quartel o que será que ele responderia?
• Essa história de algum modo conheceu bem:
olhamos, mas não vemos. Percebemos visualmente, mas não ligamos essa percepção
com a rede de nossas lembranças e conhecimento. A percepção visual fica
perdida, sem sentido associado. Diante
de um fato estranho, não usual, ou mesmo dramático ou doloroso testemunhamos
sua existência mas sem nos afetarmos pelo que foi visto. Um testemunho
burocrático e empobrecido.
• O ponto central na história do Galeano é a
questão do sentido do trabalho. Proteger as pessoas de sentarem num banco
recém-pintado é nobre (embora um aviso por escrito fosse suficiente). O quartel
propõe a Sixto que não pense, não use sua imaginação para cumprir sua tarefa,
que não tome nenhuma iniciativa (querer saber qual a função do banco, por que
está no meio do pátio, por que ele é tão valorizado a ponto de exigir um
soldado montando guarda). É um convite à alienação. E a alienação não só
empobrece, mas, faz sofrer. Sixto fica ao lado do banco, mas não participa com
sua inteligência, seu interesse pelo mundo, pelas pessoas, pelos desdobramentos
do que faz. Trabalha maquinalmente.
Albert Camus, escritor argelino, diz que a
vida sem trabalho não vale, mas quando o trabalho não envolve a alma, a vida
não se desenvolve e morre. Quanto mais complexo o circuito sujeito (pessoa),
trabalho e significado, maior o prazer que cada um tem com o que faz; o
rompimento desse circuito ocasiona sofrimento.
Sigmar
Malvezzi, em palestra realizada no SESC Pompéia contou uma passagem do livro de
Elizabeth Gaskell, escritora inglesa do século 19, que descreve o começo da
industrialização: uma família de nove pessoas trabalha em teares para produzir
novelos de linha. Ganham 13 shillings por mês. Destes 13, 7 devem ser pagos
pelo aluguel do tear, cujo dono é o patrão. portanto sobram seis. Os seis devem
pagar o leite, a aveia e as batatas com um pouco de sal, para o mês todo. No
inverno um dos integrantes da família deixa o trabalho para recolher gravetos
na vizinhança e mante-los minimamente aquecidos. E a autora faz uma observação surpreeendente
(estamos em torno de 1850): essa família
não tem tempo para apreciar o por do sol, a beleza da paisagem.
De
fato, isso é uma questão, tanto é que Antonio Candido num texto de 1988 (130
anos depois – aquele onde reproduz o relato de M. Vitoria Benevides), “O
Direito à Literatura”, que estenderíamos aqui como o direito à arte, afirma: “a
arte alimenta, sem cultura se perde a alma que dá vida ao trabalho. A arte nos
ensina a pensar, a imaginar, a conversar, a propor soluções. Põem-nos em
contato com nossas emoções, transmite experiências, organiza nossa visão de
mundo. Ajuda-nos a superar o caos e o vazio”.
No
início de nossa Era, Santo Agostinho faz um testemunho semelhante ao descrever
a primeira vez em que escutou uma missa com canto (400 dc): “quanto não corei
fortemente comovido ao escutar os cantos e hinos ressoando maviosamente na
vossa igreja. Essas vozes insinuavam-me nos ouvidos, orvalhando-me de verdade,
meu coração ardia em afetos piedosos e corriam-me dos olhos as lágrimas, mas
sentia- me consolado”.
Não
importa se é um hino religioso, uma musica sertaneja falando de saudades, ou
uma sinfonia de Beethoven. O importante é a emoção que a beleza e a provocação
da arte nos proporcionam. Sem ela, “se perde a alma que dá vida ao trabalho”.
Não
é este um bom argumento para entender e justificar os movimentos recentes pela
diminuição do tempo de trabalho? Pela semana de quatro dias?
Eva Wongtshowski é psicanalista. Membro do
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.