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A educação superior privada na caixa de Skinner: é possível construir saúde nas IES privadas? – Parte II ¹

Este texto é continuação do publicado anteriormente, em 20/12/2023. Neles, Dimitri Moita nos convida para a reflexão necessária sobre a precarização da Educação e do Trabalho, no ensino superior privado no Brasil. Estará o trabalho pedagógico submetido a experiências semelhantes às realizadas por Skinner com seus objetos de estudo (ratos em geral) para demonstrar suas hipóteses sobre o condicionamento do comportamento.


Dímitre Moita[2]

 Continuando, é necessário explicar por que a IES privada faz o contrário do que é necessário à formação de suas estudantes. Como aponta a análise institucional de Alfredo Moffatt em a Psicoterapia do Oprimido, que demonstra que o manicômio faz ao paciente justamente o contrário do que ele necessita, ou seja, ao invés de enriquecer seu mundo interno e prover mais recursos para lidar consigo e com os outros, impõe-lhe isolamento social e monotonia extrema; a IES privada provoca algo semelhante às estudantes. Diante de suas necessidades era necessário mais mundo, mais recursos.

Como muitos de nós formados em universidades públicas, deveriam poder: participar de grupos de estudo, de pesquisa, de debates, engajar em atividades de organização política estudantil, projetos de extensão, participar e organizar congressos, cursar disciplinas livres ou em outros cursos, produzir e/ou fruir arte, praticar esportes e jogos, organizar festas, realizar mobilidade acadêmica, contar com apoio pedagógico e psicossocial, enfim, atividades que fazem de uma IES uma universidade digna do nome que leva universo em seu início. As estudantes deveriam poder escolher! Terem opções concretas e eleger a ênfase que gostariam de dar à sua formação, decidir que profissional vão ser.

As respostas a essa estrutura, ao sofrimento ético-político provocado por ser obrigado a conduzir essa ingestão paradoxal, são as mais inadaptadas. O fatalismo viceja entre os docentes. Tive uma conversa com um colega da enfermagem que afirmou ter se tornado um pragmático, “as coisas são assim e busco me adaptar”. Também grassa o cinismo, “é só isso que dá pra fazer aqui e qualquer coisa já tá bom”, e a despersonalização do outro: é comum ouvir colegas na sala dos professores falarem das estudantes como incapazes, maledicentes, mal-intencionadas, sem ímpeto, fraudadoras e perseguidoras.

Também são ineficientes as respostas das estudantes: exigem a demissão de professoras antes de pensar formas de mediação, atribuem a profissionais técnicas a responsabilidade por falhas da IES, desrespeitam colegas e professores... Várias vezes escutei de estudantes “só quero pegar meu diploma e sair desse lugar” (uma vez ao invés de lugar, inferno). Tão diferente da sensação que tive ao me formar na instituição pública em que estudei, só pensava em alguma forma de voltar àquela universidade. Na IES privada, os memes e as figurinhas de whatsapp “a universidade não me dá um segundo de paz” e “a universidade destruiu minha vida” fazem sucesso nas redes sociais e são usados com frequência porque sintetizam o sentimento mais comum das estudantes em relação à faculdade.

Se alguém que lê se questiona “mas não foi sempre assim?”. Até onde vai meu conhecimento, não. Uma década atrás as professoras, mesmo horistas, recebiam o dobro da remuneração percebida hoje. Tinham tempo dedicado a outras atividades que não a sala de aula. “Ah, então era um paraíso!”, não. Apenas quero indicar que o processo é de precarização: desabrida, galopante e explícita. É angustiante iniciar cada semestre com a questão “o que vão nos tirar agora?”. Porque enquanto escrevo não consigo pensar como liofilizar ainda mais essa educação (e se conseguisse não compartilharia para não dar ideia), mas a meia dúzia de semestres que trabalhei na IES privada já me ensinaram bem: sempre é possível tirar mais um pouco, enxugar mais um tanto, desidratar mais o ensino.

Sei que o ímpeto revolucionário não dispõe de muitos adeptos entre nós. Sei também que o desejo de conciliação de classe tem se disfarçado de realismo político onde o discurso da mudança social se multiplica, mas o que venho refletindo (e torço que este relato colabore para ampliar nossa compreensão) é que as IES privadas, geridas pelos grandes grupos de capital aberto, não estão sequer sob a civilidade frágil do capitalismo regulado. É o capitalismo gore ou o neoliberalismo pornográfico (como escutei de um colega sociólogo) que impera ali. E como costuma ser sob o capital, a finalidade social da organização, educar, é subsumida, está baleada na beira da estrada, sem quem lhe socorra; mas os lucros (que podem ser conhecidos ao acessar a comissão de valores mobiliários, para os grupos de capital aberto) crescem com um fôlego de maratonista, de triatleta, trimestre após trimestre.

Em minha formação como psicólogo, ao final da disciplina de análise do comportamento, os ratos com que passamos o semestre, da caixa de Skinner iam para o viveiro das cobras. Quando não eram mortos e descartados por não serem mais úteis para qualquer outro experimento. Nem em qualquer analogia, merecemos, estudantes e professoras, destinos semelhantes.



[1] Este texto é continuação do anteriormente publicado neste blog. Esta divisão ocorreu pelos critérios de publicação – tamanho dos textos até 5.000 caracteres.

[2] Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade do Ceará. Aperfeiçoamento em Saúde Mental Relacionada ao Trabalho pelo Instituto Sedes Sapientiae. Professor de Psicologia.

 

This entry was posted on 24 janeiro, 2024. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.

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