Este texto é continuação do publicado anteriormente, em 20/12/2023. Neles, Dimitri Moita nos convida para a reflexão necessária sobre a precarização da Educação e do Trabalho, no ensino superior privado no Brasil. Estará o trabalho pedagógico submetido a experiências semelhantes às realizadas por Skinner com seus objetos de estudo (ratos em geral) para demonstrar suas hipóteses sobre o condicionamento do comportamento.
Dímitre Moita[2]
Como muitos de nós formados em
universidades públicas, deveriam poder: participar de grupos de estudo, de
pesquisa, de debates, engajar em atividades de organização política estudantil,
projetos de extensão, participar e organizar congressos, cursar disciplinas
livres ou em outros cursos, produzir e/ou fruir arte, praticar esportes e
jogos, organizar festas, realizar mobilidade acadêmica, contar com apoio
pedagógico e psicossocial, enfim, atividades que fazem de uma IES uma
universidade digna do nome que leva universo em seu início. As estudantes
deveriam poder escolher! Terem opções concretas e eleger a ênfase que gostariam
de dar à sua formação, decidir que profissional vão ser.
As respostas a essa estrutura, ao
sofrimento ético-político provocado por ser obrigado a conduzir essa ingestão
paradoxal, são as mais inadaptadas. O fatalismo viceja entre os docentes. Tive
uma conversa com um colega da enfermagem que afirmou ter se tornado um
pragmático, “as coisas são assim e busco me adaptar”. Também grassa o cinismo, “é
só isso que dá pra fazer aqui e qualquer coisa já tá bom”, e a
despersonalização do outro: é comum ouvir colegas na sala dos professores
falarem das estudantes como incapazes, maledicentes, mal-intencionadas, sem
ímpeto, fraudadoras e perseguidoras.
Também são ineficientes as
respostas das estudantes: exigem a demissão de professoras antes de pensar
formas de mediação, atribuem a profissionais técnicas a responsabilidade por
falhas da IES, desrespeitam colegas e professores... Várias vezes escutei de
estudantes “só quero pegar meu diploma e sair desse lugar” (uma vez ao invés de
lugar, inferno). Tão diferente da sensação que tive ao me formar na instituição
pública em que estudei, só pensava em alguma forma de voltar àquela universidade.
Na IES privada, os memes e as figurinhas de whatsapp “a universidade não me dá
um segundo de paz” e “a universidade destruiu minha vida” fazem sucesso nas
redes sociais e são usados com frequência porque sintetizam o sentimento mais
comum das estudantes em relação à faculdade.
Se alguém que lê se questiona
“mas não foi sempre assim?”. Até onde vai meu conhecimento, não. Uma década
atrás as professoras, mesmo horistas, recebiam o dobro da remuneração percebida
hoje. Tinham tempo dedicado a outras atividades que não a sala de aula. “Ah, então
era um paraíso!”, não. Apenas quero indicar que o processo é de precarização: desabrida,
galopante e explícita. É angustiante iniciar cada semestre com a questão “o que
vão nos tirar agora?”. Porque enquanto escrevo não consigo pensar como
liofilizar ainda mais essa educação (e se conseguisse não compartilharia para
não dar ideia), mas a meia dúzia de semestres que trabalhei na IES privada já
me ensinaram bem: sempre é possível tirar mais um pouco, enxugar mais um tanto,
desidratar mais o ensino.
Sei que o ímpeto revolucionário
não dispõe de muitos adeptos entre nós. Sei também que o desejo de conciliação
de classe tem se disfarçado de realismo político onde o discurso da mudança
social se multiplica, mas o que venho refletindo (e torço que este relato
colabore para ampliar nossa compreensão) é que as IES privadas, geridas pelos
grandes grupos de capital aberto, não estão sequer sob a civilidade frágil do
capitalismo regulado. É o capitalismo gore ou o neoliberalismo pornográfico
(como escutei de um colega sociólogo) que impera ali. E como costuma ser sob o
capital, a finalidade social da organização, educar, é subsumida, está baleada
na beira da estrada, sem quem lhe socorra; mas os lucros (que podem ser
conhecidos ao acessar a comissão de valores mobiliários, para os grupos de
capital aberto) crescem com um fôlego de maratonista, de triatleta, trimestre
após trimestre.
Em minha formação como psicólogo,
ao final da disciplina de análise do comportamento, os ratos com que passamos o
semestre, da caixa de Skinner iam para o viveiro das cobras. Quando não eram
mortos e descartados por não serem mais úteis para qualquer outro experimento.
Nem em qualquer analogia, merecemos, estudantes e professoras, destinos
semelhantes.
[1] Este texto é continuação
do anteriormente publicado neste blog. Esta divisão ocorreu pelos critérios de
publicação – tamanho dos textos até 5.000 caracteres.
[2] Psicólogo, mestre e doutor
em Psicologia pela Universidade do Ceará. Aperfeiçoamento em Saúde Mental
Relacionada ao Trabalho pelo Instituto Sedes Sapientiae. Professor de
Psicologia.