Blog Núcleo Semente

O Blog do Núcleo Semente tem por objetivo ampliar o espaço de divulgação e discussão de temas relacionados ao mundo do Trabalho, da Saúde Mental e dos Direitos Humanos. Está aberto à colaboração de todxs os membros do Núcleo e de pesquisadores e pessoas de outras áreas que tenham interesse nessas temáticas. Equipe responsável: GT Comunicação e Difusão: Ana Yara e M Laurinda R Sousa.

Archive for julho 2023

Breve História dos Começos

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Texto escrito por M. Laurinda R. Sousa

Para abrir o espaço deste blog, ocorreram-me vários caminhos. Escolher temas que têm sido manchete nos últimos tempos. Retomar depoimentos pessoais sobre experiências pertinentes a esta temática, reveladores de uma sociedade racista, excludente e violenta. Falar (principalmente) sobre o percurso de Edith Seligman-Silva e seu lugar pioneiro neste campo. Dentre tantas opções, decidi 
 partilhar um escrito sobre o lançamento oficial do Núcleo Semente. Imaginei que falar disso seria também falar, ao menos tangencialmente, das ideias anteriores. Edith estaria presente em qualquer dos caminhos escolhidos. O texto saiu mais longo do que o desejável para um blog. Espero que os próximos, a serem escritos por qualquer um de nós, sejam mais breves.  Mas como ele reflete um encontro tão festivo e afetivo, peço perdão pelos excessos. As festas têm, sempre, essas marcas. Tive o privilégio de coordenar essa atividade.

No dia 7 de abril de 2022, numa manhã de sol, ocorreu o lançamento oficial do Núcleo Semente. Saúde Mental e Direitos Humanos Relacionados ao Trabalho, no espaço virtual do Instituto Sedes Sapientiae.

Espaço virtual tem aqui um sentido figurado e múltiplo. O primeiro é evidente: estávamos na pandemia do COVID 19 e as reuniões presenciais eram, ainda, bastante limitadas pelo risco significativo da contaminação. Virtual, também por escolha; por ser o que permitiria a participação dos que estão em outras cidades ou estados. Mas, virtual tem, também, outro sentido; o sentido daquilo que se anuncia como potência. O nome Semente, que escolhemos depois de uma longa discussão (inevitável quando se tenta encontrar um nome que condense diversos projetos e ideias), traz inscrita a ideia da potência. Potência daquilo que pode germinar, ampliar-se, expandir-se e dar origem a múltiplas ramificações.

O próprio núcleo foi, já em sua origem, a germinação de uma história anterior. Começou a ser sonhado alguns anos antes. Inicialmente a partir da experiência com os que se inscreveram no curso de Saúde Mental Relacionada ao Trabalho que teve início em 2015 e, posteriormente, com as discussões que foram se organizando no Grupo de Trabalho voltado à continuidade do estudo dessa temática. Grupo de trabalho que se fortaleceu não só pelo interesse no Mundo do Trabalho e dos Direitos Humanos, mas, principalmente, pelo prazer do encontro e da troca de experiências entre profissionais e pesquisadores que, ligados a diferentes instituições e lugares de pertinência, encontraram nesse espaço um lugar de hospitalidade para suas preocupações, suas experiências, seus projetos.

Irmã Pompéia que representou a diretoria do Instituto no momento inaugural, enunciou suas primeiras palavras com um trecho da canção dos Trabalhadores da Terra: “Ponha a semente na terra. Não será em vão. Não te preocupes com a colheita. Planta-se para o irmão”. Anunciou, também, o reconhecimento da herança que recebemos de Madre Cristina – a de caminhar à frente de seu tempo. Começar com uma canção que remete aos trabalhadores e ao valor da fraternidade e lembrar de Madre Cristina, foi uma feliz inspiração. Alguns de nós, presentes naquela mesa inaugural, acompanhamos de perto a luta de Madre Cristina pela Justiça Social, pela Democracia e pelos Direitos Humanos. Sua figura marca a história do Instituto Sedes Sapientiae e dos que o constituíram. Marca, também, os princípios que balizam nosso projeto.

No painel que se apresentou logo de início, ficou mapeado o que toldava sombriamente aquela manhã de sol e de muitas outras que lhe antecederam: a dor dos lutos impossíveis, o horror diante do desgoverno do país, a crise climática, os efeitos traumáticos dos rompimentos das barragens, a pandemia, o aumento da pobreza e da fome, a autorização perversa para o uso de pesticidas, a precarização das condições do trabalho, a precarização da vida. Precarização resultante de uma estratégia de destruição daquilo e daqueles que não compactuam com as ações extrativistas e com o lucro perverso; prioridades do neoliberalismo.

Anunciava-se para o Núcleo um lugar democrático de resistência, de denúncia e de construção de outras formas de viver, de trabalhar e de cuidar do meio ambiente. Uma ética do cuidado, da solidariedade e da construção do comum.

Dra. Edith Seligmann-Silva, foi a figura de honra dessa mesa inaugural. Pesquisadora incansável, precursora dos estudos sobre as questões da Saúde Mental Relacionadas ao Trabalho. Responsável pela coordenação do curso que abriu a temática do Trabalho, dentro do Sedes e pela sustentação afetiva e intelectual deste grupo. Mestra no sentido mais verdadeiro da palavra: aquela que abre portas, reconhece o trabalho dos que se aproximam dela, valoriza e inclui a produção de outros grupos e instituições. Mestra, também, no sentido de quem tem sempre um olhar e uma palavra afetuosa para os que partilham com ela a ética do viver partilhado de uns com os outros.

Edith fez um levantamento dos itinerários da precarização, do desgaste mental provocado pelas más condições do trabalho, desgaste que vai dar origem ao desemprego e à dificuldade de retorno à vida ativa. Precarização que teve início com a escravização e se manteve como estrutural até os dias de hoje. A expansão do neoliberalismo acirrou a falta de perspectivas para grande parte da população, criando um quadro de apatia, assujeitamento e desamparo. Ao final de sua fala, ressaltou a necessidade de esforço e criatividade para enfrentar a perversidade do Sistema e do governo atual (estávamos sob os efeitos trágicos do governo daquele que nem se deve nomear) e defender os direitos à Saúde  (com a valorização necessária do SUS), à Educação e ao Trabalho com garantias e direitos.

Luci Praun fala a seguir, anunciando “A precarização social do trabalho; as condições atuais e os desafios para o futuro”. Suas primeiras palavras foram sobre o afeto que nos une como grupo, a força que manteve esta união, apesar da pandemia. Subjacente a esse afeto, o interesse comum: a causa do sofrimento no trabalho.

Mudanças no mundo do trabalho, ressalta Luci, precisam ser reconhecidas como sendo parte do mundo concorrencial do capitalismo que se disseminam e impactam a vida como um todo. A pandemia veio acentuar tendências de precarização que já se vinham anunciando. Os espaços de trabalho foram incorporando diretrizes que aumentaram as pressões, as sobrecargas, as explorações e levaram à uberização, tal como definida por Ricardo Antunes: flexibilidade total, disponibilidade permanente, mascaramento das relações do trabalho (empreendedorismo). Uma outra nomeação – a plataformização - vem denunciar uma cena mais grave e a naturalização de certas práticas ilegais de vinculação ao trabalho, às quais está submetida principalmente a parte mais vulnerável da população. O medo, a insegurança, o desgaste, o presenteísmo, a desesperança, o mal-estar, são os afetos pregnantes dessa realidade e que se estendem numa degradação social a longo prazo.

O que queremos para o futuro? O que vamos deixar como legado? Pergunta que ela própria responde: É necessário inventar um outro futuro, completamente distinto do proposto pelo mundo capitalista neoliberal, e que só pode se efetivar se reinventarmos as ações coletivas em unidade com todos submetidos a formas de exploração e dominação. O Núcleo, disse Luci, é nossa pequena forma de nos mantermos juntos e contribuir para mudanças tão necessárias e urgentes. Suas palavras foram impactantes e emocionaram o coletivo.

Maria Maeno, que faz um trabalho intenso de pesquisa e fala pública é convocada, com afeto, a se pronunciar. Também valoriza a esperança que se anuncia com a proposta do Núcleo. Retoma a história da pandemia desde o seu início, num cenário de profunda precarização. Mas algumas conquistas nos alentavam nesse início: nossa tradição em enfrentar catástrofes, uma legislação eficiente para enfrentar emergências em saúde pública e a existência do SUS, apesar de muitos ataques. No entanto, as adversidades foram enormes. Desde a gravidade da desigualdade social até um governo e congresso voltados para o enxugamento do Estado com diminuição das verbas do SUS e terceirização das ações sociais. Ao longo da pandemia vislumbramos a ausência de um comando nacional com minimização dos efeitos da pandemia e distorção das prioridades de atenção. Os trabalhadores que continuaram em atividade não tiveram proteção e garantias de segurança.  Pesquisas mostraram que os trabalhadores viveram situações de imensos riscos – falta de ventilação, falta de máscaras e proximidade física que favorecia a contaminação. Muito difícil foi a comprovação do nexo causal da Covid e o trabalho que implicaria em garantias e benefícios trabalhistas. Inclusive dos efeitos tardios da Covid que ainda estão sendo investigados. Para que todos os cuidados necessários possam de fato ser efetivados, termina Maria Maeno, é preciso fortalecer o SUS, que está presente em toda nossa vida estejamos bem ou mal e saibamos ou não, e lembra o lançamento da Conferência de Saúde Livre democrática e popular pela frente e pela vida, que também terá como causa a defesa e fortalecimento do SUS público e não privado, a quebra do teto de gastos e o aprimoramento dos serviços públicos que permitam um projeto de nação soberana, democrática e voltada para o bem de todos.

Eliana Pintor, que também faz parte da coordenação do Núcleo e do Curso Saúde Mental Relacionada ao Trabalho, abriu a mesa 2, para falar de dois eixos do Núcleo – o de formação continuada e o de Comunicação.  Cita Paulo Freire, para referendar as ações do Núcleo: “A Educação é um um ato de amor, por isso um ato de coragem, não pode temer o debate, a análise da realidade, não pode fugir da discussão, sob pena de ser uma farsa”. O Núcleo, ressaltou, se propõe a isso e esses eixos se abrem para criar espaços coletivos de discussão e disseminação de nossas propostas. E, também, para viabilizar cooperação e apoio a outros grupos que têm necessidades e ações pertinentes aos nossos projetos. Eliana encerra sua fala com um poema de Adélia Prado: “Tem mais alguma coisa pra lavar? Tem sim. Uma alma encardida. Um grão de esperança lava”. Nosso coletivo seria esse grão de esperança.

Damares Vicente, que também faz parte da coordenação do Núcleo, fala sobre outro eixo:  Trabalho, Território e Saúde. Um projeto que se propõe a realizar ações diretas junto aos trabalhadores, para tratar de garantias de direitos humanos e da saúde mental relacionada ao trabalho. As referências estão pautadas nos ensinamentos de Paulo Freire e na organização de parcerias com o Centro de Educação Popular do Sedes (CEPIS), o Instituto Walter Leser, a Universidade Federal da Paraíba e a Universidade Federal de São Paulo, Campus da Baixada Santista. A proposta é de encontros coletivos para tratar dos desafios do capitalismo contemporâneo e para avaliar e compreender as necessidades decorrentes de nossa história atravessada pelos efeitos do patriarcado, do colonialismo, das desigualdades, da racialização da classe trabalhadora, da precarização do trabalho e da vida. 

Janete Silva fala em seguida sobre outra vertente de atuação: Escuta e acolhimento. O acolhimento e escuta do sofrimento mental ocasionado pelo mundo do trabalho. O grupo tem três eixos: Um eixo de estudo, de territorialidade ampliada (que se abre para o mundo externo e interno) e de contatos com movimentos sociais e de pessoas que estão totalmente excluídas de seus direitos – moradia, saúde, educação. A proposta é ativa e se propõe na ida ao encontro desses grupos, estimulando o desenvolvimento de ações que possibilitem mudanças.

Mario Cabral traz, na fala final dessa mesa, a denúncia do genocídio e etnocídio da população indígena, que se iniciou em 1500, agudizou-se na ditadura militar, no desmantelamento da FUNAI, na falta de assistência durante a pandemia, no ataque aos povos isolados, na exploração das mineradoras e na ameaça do marco temporal. Algumas resistências garantiram certas proteções: a própria constituição de 88 garantiu direitos, mas não foram respeitados; os movimentos mais recentes evidenciam a coletivização e organização de diferentes grupos que se manifestam publicamente diante dos espaços oficias. Retoma, para terminar, a pergunta de Luci: o que se quer para o futuro?   Grande parte da resposta, diz ele, pode ser encontrada nos povos originários e no cuidado do mundo presente no trabalho realizado por essa população. E uma indicação preciosa: todos temos que conhecer e usufruir do livro “A queda do céu” de Davi Kopenawa e Bruce Albert.

Edith, tocada pela fala e atuação de Mario, faz uma proposta para o Núcleo: que se constitua um grupo de trabalho voltado para as questões do meio ambiente e para a realidade dos povos originários.  Não só para que nos aliemos às lutas pela preservação de sua cultura e territórios, mas também para que os povos originários nos ajudem a enfrentar a calamidade ambiental e a precarização da vida do trabalho que nos assola.

Foi o que tentou fazer Ailton Krenak, líder indigenista, ao enunciar seus sonhos para adiar o fim do mundo e alertar-nos para a metástase do capitalismo que ocupou o planeta inteiro e se infiltrou na vida de maneira incontrolável:

 “É preciso suspender o céu e pisar macio na terra. Ampliar os horizontes, harmonizar-se com a herança cultural dos povos originários, que só precisavam trabalhar algumas horas do dia para proverem tudo que era preciso para viver” (A vida não é útil, 2020, p.23-24).

 Termino dizendo que ouvir a gravação deste encontro (disponível no YouTube do Sedes e no Site do Núcleo), tornou presente, para mim, a importância de nosso grupo e a corrente de afeto que nos manteve e nos mantém unidos. Luci Praun, numa de suas respostas às perguntas, marcou novamente, a importância do coletivo e a necessidade de se reinventar as formas de resistência e luta. O Núcleo tem sua força nesse coletivo.

Coordenação inicial do Núcleo Semente: Saúde Mental e Direitos Humanos Relacionados ao Trabalho:  Edith Seligmann-Silva, Eliana Pintor, M. Laurinda R. de Sousa. Damares Vicente, Luci Praun, Marcia Espanhol Bernardo, Pedro Mascarenhas, Vera Salerno.